Um boicote é um tipo de recusa coletiva de compactuar com uma ação, vista como errada, de uma pessoa ou empresa na tentativa de privá-la de receita como forma de influenciar o modo como essa entidade opera. Então onde “Mulan” entra nisso? Tudo começou como uma resposta a comentários feitos por Liu Yifei, a estrela do filme da Disney, que apoiou a polícia de Hong Kong em sua repressão violenta aos manifestantes pró-democracia – mas acabou se tornando em algo ainda maior.
Conforme observa publicação do Den Of Geek, o boicote ao “Mulan”, da Disney, é parte agora de uma questão muito maior: a disposição de Hollywood de ignorar as violações dos direitos humanos do governo chinês para ter acesso às bilheterias do país – e ao alto lucro que isso gera.
Os protestos de Hong Kong – o que são?
Para você entender como e o por que da campanha de boicote contra o filme da Disney, é necessário entender a situação de Hong Kong – que para quem não sabe é uma “região de administração especial” da República Popular da China e está localizada na costa sul e faz fronteira com a província chinesa de Guangdong.
Hong Kong foi conquistado pelos britânicos em 1840, que governaram o território até 1997; depois do fim do tratado de 1898 que o governo britânico assinou basicamente fazendo um arrendamento do território por 99 anos, com vencimento em 1997. Depois disso Margaret Thatcher (que era primeira-ministra do Reino Unido) passou o território para a China em 1º de julho de 1997, com a promessa de que o país asiático daria a Hong Kong um “alto grau de autonomia” por 50 anos, até 2047. A configuração ficou conhecida como regra “um país, dois sistemas”.
Na prática, essa “garantia de autonomia” não funcionou por anos, com a China influenciando diretamente nas leis e governos locais. Mas, conforme explica reportagem da Vox, os protestos começaram exatamente quando a situação se tornou insustentável quando uma proposta de lei para extradição de pessoas de Hong Kong para a China – notavelmente um país que aprisiona arbitrariamente seus cidadãos se eles desagradam ao governo.
Então, esses protestos pró-democracia se tornaram mais do que apenas isso, se transformou em uma batalha pelo futuro de Hong Kong. Os manifestantes não estão apenas lutando contra o governo local. Eles estão desafiando um dos países mais poderosos do planeta: a China e seu domínio controverso; Mas eles não estão tendo seus direitos de protestar, com o governo usando a polícia para deter de forma violenta as manifestações – e é aí que entra “Mulan”.
Os pedidos crescentes de boicote ao filme da Disney, vêm de manifestantes e defensores de direitos humanos de Hong Kong, bem como do movimento organizado entre os manifestantes pró-democracia na Tailândia, Hong Kong e Taiwan que estão se “unindo pela causa democrática para lutar contra o domínio crescente da China na Ásia”, conhecido como #MilkTeaAlliance – nome de uma bebida doce popular e comum nesses países.
Qual é o escândalo com Mulan, da Disney?
Em agosto de 2019, em meio aos protestos em prol da democracia de Hong Kong, que enfrentaram uma violência exagerada por parte da polícia do estado – amplamente condenada por instituições de direitos humanos e até mesmo pela ONU -, Yifei acessou Weibo para publicar uma postagem proferindo apoio a polícia:
“Eu também apoio a polícia de Hong Kong. Você pode me bater agora”, escreveu a atriz chinesa naturalizada estadunidense em mandarim, não parando por aí. “Que vergonha para Hong Kong”, ela continuou escrevendo dessa vez em inglês. Uma observação importante é que o Weibo é uma versão chinesa do Twitter, que é proibido no país.
Ela não foi a única do filme da Disney a apoiar o governo chinês. A co-estrela de “Mulan”, Donnie Yen, parece concordar com isso, já que ele teve chegou ao ponto de acessar seu perfil no Facebook para comemorar o 23º aniversário do domínio da China em Hong Kong.
Com o lançamento de Mulan de hoje, a campanha #BoycottMulan ressurgiu, com os ativistas, manifestantes pró-democracia e defensores de direitos humanos pedindo “todos os que acreditam nos direitos humanos” deveriam boicotar o filme da Disney.
“Este filme é lançado hoje. Mas porque a Disney faz reverências a Pequim, e porque Liu Yifei abertamente e orgulhosamente aprova a brutalidade policial em Hong Kong, peço a todos os que acreditam em direitos humanos para Boicotarem Mulan”, escreveu Joshua Wong, um proeminente ativista pela democracia de Hong Kong.
Por que #BoycottMulan?
Como no início deste artigo, a definição de boicote é a chave para entender qual é o objetivo do movimento de boicotar “Mulan”. Nesse caso, o negócio é a grande corporação multinacional conhecida como Disney; não estamos aqui considerando o lado da questão se uma corporação deve ou não deter tanta riqueza e poder (quase que um monopólio) quanto a Disney – resposta curta: não -, mas sim que todos podemos concordar que a Disney tem uma enorme influência global e, agora, a empresa (como outros estúdios de Hollywood) está usando esse poder para agradar a China.
Por causa disso, o boicote ao filme é feito para prejudicar a obtenção de lucros com “Mulan” para Walt Disney Company, na esperança de influenciar a estratégia atual da corporação de compactuar com o governo chinês.
Dessa forma, a campanha do boicote ao “Mulan” é parte de uma questão muito maior: a disposição das corporações multinacionais (incluindo os estúdios de Hollywood) de ignorar as violações dos direitos humanos na China para acessar o mercado chinês e obter lucros.
Como você provavelmente sabe, a bilheteria chinesa é a segunda maior e está caminhando para se tornar na maior, o que significa que Hollywood usa o país para obter grandes bilheterias, mas para lançar um filme na China, é necessário ter a aprovação do governo, que tem normas de censura cada vez mais rígidas e permite apenas um certo número de filmes estrangeiros por ano.
Sob o acordo atual entre os Estados Unidos e a China, os estúdios americanos obtêm apenas 25% das vendas de ingressos de seus filmes na China (em comparação com 50% nos EUA e 40% na maioria dos outros países), uma demonstração do que Hollywood e os EUA estão dispostos a aceitar quando se trata de obter acesso às bilheterias chinesas. Além disso os filmes estão cada vez mais sendo feito e modificados para poder conseguir passar pela censura chinesa.
De acordo com o LA Times, os estúdios de Hollywood nem sempre sabem se os filmes passarão pela censura do governo e, se passarem, não há um período de tempo definido entre o aviso de aprovação e a data de lançamento, o que muitas vezes faz os estúdios lutarem para promover seus filmes na China antes de chegarem as bilheterias. Além disso, os representantes do governo chinês determinam como e quando um filme estrangeiro estreia, com o poder de fazer ou quebrar o sucesso de um filme com base em decisões como datas de lançamento ou número de telas para exibição. Não é necessariamente um problema a China determinar a distribuição de filmes em seu próprio país, mas o problema está em censurá-los e com isso influenciar na narrativa deles.
Tudo isso é apenas para comprovar que Hollywood realmente deseja acesso ao mercado chinês, e os estúdios estão dispostos a fazer muito para garantir lucro. Não apenas influenciar a forma como os filmes serão feitos e lançados, como também (e mais perigosamente) ignorar violações horríveis dos direitos humanos como os campos de concentração chineses, nos quais mais de 1 milhão de seres humanos de outras etnias estão presos.
“A China prendeu tantos muçulmanos em Xinjiang que não havia espaço suficiente para mantê-los”, relata a reportagem do BuzzFeed News denunciando os campos de concentração da China.
Como empresa multinacional e multibilionária, a responsabilidade e planejamento da Disney não é com os direitos humanos, mas com o lucro. É por isso que ativistas políticos, como os de Hong Kong, usam estratégias como o boicote para influenciar a tomada de decisões corporativas: porque se não for suficiente mostrar que isso é moralmente errado, prejudicar os lucros fará com que as empresas ajam para fazer o que é moralmente certo com o objetivo de não prejudicar seus lucros.